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Fernando Pessoa

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Sossega, coração !

 

Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.

Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!

Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solente pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.

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Navegar é Preciso

 

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".

Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:

Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.

Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.

É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.

"Navigare necesse; vivere non est necesse" - latim, frase de Pompeu, general romano, 106-48 aC., dita aos marinheiros, amedrontados, que recusavam viajar durante a guerra, cf. Plutarco, in Vida de Pompeu]

 

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Intervalo

 

Quem te disse ao ouvido esse segredo
Que raras deusas têm escutado -
Aquele amor cheio de crença e medo
Que é verdadeiro só se é segredado?...
Quem te disse tão cedo?

Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.
Não foi um outro, porque não sabia.
Mas quem roçou da testa teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?

Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi só qualquer ciúme meu de ti
Que o supôs dito, porque o não direi,
Que o supôs feito, porque o só fingi
Em sonhos que nem sei?

Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que não passa do meu pensamento
Que anseia e que não sente?

Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frase eterna, imerecida e louca -
A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.

 

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Sou o Espírito da treva

 

Sou o Espírito da treva,
A Noite me traz e leva;

Moro à beira irreal da Vida,
Sua onda indefinida

Refresca-me a alma de espuma...
Pra além do mar há a bruma...

E pra aquém? há Cousa ou Fim?
Nunca olhei para trás de mim...

 

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A Lua

 

A Lua (dizem os ingleses),
É feita de queijo verde.
Por mais que pense mil vezes
Sempre uma idéia se perde.

E era essa, era, era essa,
Que haveria de salvar
Minha alma da dor da pressa
De... não sei se é desejar.

Sim, todos os meus desejos
São de estar sentir pensando...
A Lua (dizem os ingleses)
É azul de quando em quando.

 

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Eros e Psique

 

...E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades
que vos foram dadas no Grau de Neófito, e
aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto
Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.

(Do Ritual Do Grau De Mestre Do Átrio
Na Ordem Templária De Portugal)

Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

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Análise

 

Tão abstrata é a idéia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,
E nada fica em meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ver tão longemente,
E a idéia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que, só por ter-me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
A ilusão da sensação, e sonho,
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.

 

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BIOGRAFIA

 

Poeta dos mais estimados no Brasil, Fernando Pessoa publicou em vida apenas dois livros, mas deixou uma obra valiosa em que expressa, como poucos, a angústia e as contradições do homem moderno. Afora o mérito inquestionável do escritor, atrai atenção também seu curioso desdobramento em heterônimos, dos quais os mais conhecidos são Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis, poetas, e Bernardo Soares, prosador.


Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa em 13 de junho de 1888. Aos cinco anos perdeu o pai, que era crítico musical. Em vista do segundo casamento da mãe, foi levado em 1896 para Durban, África do Sul, onde fez os cursos correspondentes ao primeiro e segundo graus. Em 1901 escreveu os primeiros poemas, em inglês, e três anos depois já lera os grandes autores de língua inglesa, como William Shakespeare, John Milton, Keats, Shelley, Tennyson e Edgar Allan Poe.

Em 1905 voltou sozinho para Lisboa e iniciou o curso superior de letras, que deixou no ano seguinte. A fim de dispor de tempo para ler e escrever, recusou vários bons empregos e em 1908 passou a trabalhar como tradutor autônomo em escritórios comerciais. Desenvolveu então enorme atividade crítica e criativa, publicou estudos sobre a literatura portuguesa em A Águia (1912) e poemas em A Renascença (1914). Criou, nessa época, seus heterônimos principais, três personagens distintos, que nada tinham de simples pseudônimos: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis.

Em 1915 apareceram os dois números da revista Orfeu (o segundo foi dirigido por Pessoa e Mário de Sá-Carneiro), com a "Ode triunfal", a "Ode marítima" e outros textos que já revelavam o inconfundível talento do poeta. Ao viver a paixão, irrealizada, por Ofélia Queirós, Fernando Pessoa lhe explicou, em carta, que sua vida girava em torno da literatura, sendo tudo o mais secundário. Em 1929 organizou com Antônio Boto uma antologia dos poetas portugueses modernos. Em sua fase de maior atividade, lançou diversas teorias estéticas, como o sensacionismo, o paulismo e o interseccionismo.

Vivia, então, em quartos alugados, conflituoso, sujeito a crises de depressão e alcoolismo. Com Mensagem (1934), único livro em português que publicou em vida, concorreu ao Prêmio Antero de Quental, do Secretariado de Propaganda Nacional. Por ser a obra muito pequena, segundo a justificativa alegada na ocasião, ganhou o segundo lugar. O livro é um conjunto de poemas sobre os mitos portugueses em que, a par de alta emotividade, se manifesta profunda reflexão. Morreu em 1935.

 

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Postadas em agosto de 2005

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